Fui alfabetizado aos seis anos, e, a partir daí, não parei de ler. A começar dos jornais diários, onde procurava principalmente as notícias sobre a guerra. Não era preciso ir longe, então, para estimular a imaginação de uma criança. O racionamento de gasolina, de farinha de trigo, o blecaute, as campanhas para o esforço de guerra, juntavam-se às notícias impressas.
Mas os jornais, naquela época, eram bem diferentes do que são hoje.
Em primeiro lugar, eles eram muitos. Conseguiam sobreviver com as assinaturas e a venda em banca (embora já existisse o jabá); a propaganda que faziam era de produtos triviais como o rum creosotado, o óleo de fígado de bacalhau, as pílulas de vida do dr. Ross. Ainda não havia a concentração de meios e de poder que existe agora.
Os jornais, assim como a família, a igreja e a escola, eram instrumentos de formação; por exemplo, de formação literária; não é preciso grande esforço para lembrar dos nomes que assinavam suas colunas, como, em São Paulo, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, entre tantos outros, poetas e ficcionistas que eram também cronistas, como Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Rubem Braga, assim como, a seu tempo, fôra Machado e todo publicista que se prezasse.
Porque os jornais tinham sabor humano e partido político, não escondendo suas preferências por trás de uma pretensa e hipócrita objetividade. Em suma: jornais eram órgãos de notícias acompanhadas de propaganda, e não, como hoje, órgãos de propaganda oculta em notícias (uso o termo “propaganda” no seu significado técnico: meio escuso para o convencimento e a manipulação das pessoas).
Os jornais mudaram, mas seus leitores não; estas continuam acreditando no que eles dizem; não só por causa do hábito, mas porque, sendo impossível viver sem informação, é nos jornais (além de, hoje, na TV – um caso à parte) que nos acostumamos a buscá-la.
Alguém poderá perguntar: se não podemos acreditar no que sai nos jornais, como teremos acesso às notícias? Respondo: não sei. Estou escrevendo este editorial para dizer que – tanto quanto qualquer pessoa que goste de conhecer a realidade – também estou perdido.
Só posso dizer o seguinte: que, felizmente, as circunstâncias me levaram a gostar de história, que é a mestra da vida. Não havendo luta, nem controvérsia, cessa o interesse na propagação da mentira.
Por exemplo, nestes dias, estava relendo o Críton, que é o diálogo, subscrito por Platão, em que se conta a antevéspera da morte de Sócrates.
O filósofo recebe de madrugada, na prisão, a visita de seu amigo Críton, que, com argumentos sedutores, lhe oferece a oportunidade de fuga. Esse texto precioso não somente revela a maravilhosa personalidade de Sócrates, mas mostra as diferenças entre a democracia ateniense e aquilo que, hoje, se considera um Estado democrático de Direito. A assim chamada democracia grega, sendo o governo da plebe, sofria nas mãos de uma tirânica maioria.
Bem ciente disso, Sócrates sabe que, para perder alguém, basta espalhar calúnias a seu respeito. E que a maioria pode, por ignorância e paixão, condenar inocentes, e submetê-los a males inimagináveis.
Sócrates, lembremos, é aquele que dizia coisas absurdas e indesejáveis, do tipo: “conhece-te a ti mesmo”. Ou: “é preferível sofrer a praticar injustiça”. Aliás, é para não infringir a lei que ele se recusa a fugir, e toma a cicuta.
Sérgio Sérvulo da Cunha, professor, filósofo, jurista e escritor. Entre outras atividades já exercidas, foi vice-prefeito de Santos (1989-1992). Mantém o site www.servulo.com.br.
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