No meio da Mata Atlântica, a sobrevivência dos sem teto. Por N.C.Blake

“Quem vai salvar a vida daquela família?”. A pergunta, diante de uma inusitada cena em janeiro, continua a ser ecoada nestes tempos em que a pandemia do novo coronavírus de dissemina e ameaça os mais pobres.


Era uma tarde ensolarada de um domingo, no finalzinho de janeiro
Por N.C.Blake | Do Litoral de São Paulo (SP)

Gostaria de começar este texto citando exatamente onde essa história se passa, no entanto, não vou dizer. Se eu abrir a boca, pessoas podem se prejudicar. E é claro que não quero isso, portanto, algumas cenas e endereços serão omitidos a fim de manter a “segurança” de pessoas – que ainda não as conheço de perto.

Era uma tarde ensolarada de um domingo, no finalzinho de janeiro. Cansada de olhar pela janela o céu azul limpo, decidi convidar uma pessoa a “dar uma volta na praia” comigo. Moro no litoral de São Paulo.

Aqui na região, embora não sejam muitos como em outros lugares, uma grande quantidade do mosquito pólvora se prolifera. Para mim, essa criação desordenada é uma maldição. Sou completamente alérgica, basta uma picada para os sintomas surgirem. A surpresa é que os insetos adoram picar os tornozelos… Descobri isso ao ser mordiscada várias vezes nesta parte do corpo.

Pois bem… Neste local para onde planejei ir, é um ninho dos mosquitos! E eu, estava sem meu fiel escudeiro, o repelente. Para tentar dar uma driblada nos insetos, pedi uma calça emprestada e enfrentei o sol de 40°C de São Paulo. Detalhe: a calça é pretíssima!

Andei durante um longo período até chegar ao meu destino. Um local quase paradisíaco. Uma delas, cujo nome lembra a riqueza, estava completamente lotada pela população que dizia o inverso da nomenclatura. Músicas marginalizadas e um cheiro de carne queimada com farofa infestavam o ar naquela tarde.

Ainda faltavam poucos metros até chegar ao ponto alto desta história. Para ir até lá, era preciso passar por uma grande ronda policial, que neste momento, enquadraram 3 jovens na parede. Passei, sabendo que estava sendo inspecionada por vários olhos, que possivelmente julgaram minha aparência anacrônica – sou uma mulher da década de 60, ninguém entende.

Eu e meu convidado solene chegamos à uma muretinha que dava acesso ao paraíso. Encostado no parapeito, um casal se entregava aos amassos da juventude aos 40 anos. Em instantes, dois carros estacionaram próximos, do qual desceu uma enorme família. Pelo brilho no olhar, eram turistas. Pouco tempo depois, eles foram embora. Restou então o “jovem casal”, que continuava aos beijos e apertões calorosos. Sentei-me na muretinha e senti a adrenalina percorrendo meu corpo, algo iria acontecer.

Incomodados com a presença de outras pessoas por ali, o casal deu os últimos beijos, ajeitou a bolsa, e foi finalmente embora, deixando em cima da mureta uma lata de cerveja barata. Quanto a mim, fiquei receosa de investir naquela ideia maluca que tive há 30 minutos.

O local em questão é um prédio abandonado no meio da montanha, e também do mar. Uma grande construção íngreme e destroçado pelo tempo. Obviamente o local é proibido e somente vândalos poderiam acessar… Invadindo a mata. Lembro que um dia, quando era mais nova e, portanto, menos careta, tive essa ideia. Fui de chinelo até. Hoje, anos depois, estava eu no mesmo lugar, com All Star vermelho e uma calça preta.

A mata não era mais como recordava nas breves memórias. Em vez disso, o mato invadiu, e ao fundo é possível ver uma pequena trilha, que dá acesso à construção. Pulei, e fui seguindo. Pisando em pedras, agarrando o mato e torcendo para não descer montanha abaixo e cair de cabeça nas pedras. Se caísse, já era! Morte certeira. Iria ser noticiada nos jornais como “jovem invade área proibida e morre ao cair nas pedras da praia”. Imagina? Será que eu seria o factual do dia ou apenas uma citação?

Desviei o mausoléu de pensamentos. Deixei as aranhas guardadas lá no fundo do inconsciente e enfrentei a mata. Finalmente, cheguei à construção. Para estar laá, foi preciso pular. No caso, eu não consegui. Precisei de uma mãozinho bem no estilo ‘Welcome to the Jungle’, do Guns And Roses.

Fiquei completamente desorientada olhando ao redor. A natureza invadiu as paredes de concreto, e animais peçonhentos dominaram o “imóvel”. Durante minha estadia, vi duas aranhas – que aparentavam ser venenosas – uma lacraia e muuuuuuuuito mosquito!  Uma nova casa, desta vez, não foi destinada aos humanos. Ou será que foi?

A construção é formada por duas edificações, que ficam de cara com o mar aberto. Uma deles é a preferida pelos visitantes, pois é possível sentar-se na beira do segundo andar e apreciar a paisagem. O outro, nunca ouvi falar sobre a passagem que possibilita o acesso, mas deve existir. Devido ao tempo, o concreto está com enormes rachaduras. As vigas de ferro estão cedendo. Perigosíssimo, não?

O segundo andar, meu cantinho favorito, não existe mais. Um enorme desmoronamento aconteceu. Isto me assustou, e também fez com que andasse com cautela e olhasse para a outra edificação. Foi então, que eu vi o ponto central desta história. A exclamação que mexeu com as entranhas do meu corpo, fazendo-me escrever esta crônica.

Ao lado da depredação completa e invasão da mata tropical, uma mulher estende roupas no varal improvisado da “área”. No segundo andar do outro edifício há uma família vivendo, sem serviços básicos como: luz, água e esgoto. Na área, vejo roupas e vasos de plantas. Ao fundo, uma porta leva até os outros cômodos. No terceiro andar,  vejo o “estacionamento do condomínio”, onde uma bicicleta está estacionada. Para completar a ideia familiar, um cachorro sai da casa e começa a latir para mim, como quem diz: vaza daqui!

Ao mesmo tempo que observo e pressiono meus olhos a enxergarem mais do que meu campo de visão humana é capaz, ouço passos no segundo andar e vejo o pé de um homem. Não tenho coragem de descer, desta maneira, espio com os olhos semicerrados, para saber quem seria e qual seu objetivo com aquele espaço.

Receosa, espero o pôr do sol e enfrento a trilha. O caminho de volta para a urbanização.

No caminho de volta para a praia que cheira churrasco, passo pelos policiais novamente e penso: como aquela família faz para sobreviver?

Uma família clandestina invadiu uma construção abandonada, que está em ruínas, inclusive, grandes desmoronamentos aconteceram recentemente. Essa notícia não saiu no jornal. Essa mesma família dorme com animais peçonhentos e em dias de tempestades, a água e o vento forte invadem o sossego de uma noite tranquila.

Falar sobre sociedade é muito simples, para nós, os poetas pobres. Mas muitas vezes, falamos sobre as estatísticas como se elas existissem apenas em matérias sensacionalistas de programas na TV. Estudamos sociologia na escola e faculdade, mas quase nunca enfrentamos o mundão.

Por exemplo, neste momento que você me lê, há uma família vivendo clandestinamente em uma construção abandonada de frente ao mar. Não tenho a mínima ideia de como entram naquele convés do perigo. Não sei a passagem, mas uma família ilegal e um cachorro sabem.

Pergunto-me então: quem irá salvar aqueles que não pagam a conta do IPTU? Será que a política pública olha para a vida dessas pessoas como as que vivem em edifícios luxuosos?

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Imagem em destaque: ruínas e o mar. Por N.C.Blake


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