Obra de Eduardo Galeano decifra a origem das desigualdades sociais que acometem os povos latino-americanos
Por Michele de Mello, do Brasil de Fato | De Caracas (Venezuela)
Abril pode ser considerado um mês de luto, porque a cada dia 13, desde 2015, soma um ano a mais da partida de Eduardo Galeano.
O jornalista e escritor uruguaio, autor de 33 livros, faleceu há seis anos, vítima de um câncer de pulmão.
No entanto, como Galeano escrevia que a vida é feita de “alentos e desalentos”, abril também é o mês de celebração dos 50 anos da publicação do seu primeiro grande sucesso: “As veias abertas de América Latina”, que foi “um porto de partida, e não de chegada”, conforme dizia o autor.
A obra, traduzida a mais de 20 de idiomas, foi em várias ocasiões um best-seller, vendendo mais de 2 milhões de cópias ao ano, o que dá conta da a ideia da transcendência do autor uruguaio.
Em “As veias abertas…” Eduardo Galeano narra a história de exploração desse continente que dessangra suas riquezas desde o século XV até o período atual.
Uma investigação jornalística profunda, que une dados históricos com antropologia, mitos, realidades e sabedoria popular, numa narrativa que conduz o leitor a percorrer as realidades mais terrenas às experiências mais sublimes.
“Eduardo rompeu qualquer fronteira de estilo. Uma prosa poética, coloquial, uma profunda pesquisa histórica. A obra do Eduardo é uma obra essencial, não só para entender a América Latina, mas para entender a vida e o mundo”, comenta o escritor brasileiro e tradutor de várias obras de Galeano ao português, Eric Nepomuceno.
Em várias entrevistas, Galeano comentou que “As veias abertas…” era uma obra despretensiosa, fruto de uma necessidade de mergulhar e entender a história da nossa América.
“Acho que a principal razão da vigência e o impacto do livro esteve na combinação do tema com o estilo. Falou de algo que o público necessitava conhecer em profundidade e fez de uma forma que realmente cativava”, analisa o jornalista e escritor Roberto López Belloso, uruguaio como Galeando.
SOBRE O LIVRO
Partindo das principais riquezas naturais da nossa região – que pela força das potências econômicas estrangeiras se converteram em mercadorias: prata, ouro, petróleo, algodão, café, frutas, açúcar – Galeano mostra como foi imposta a condição de colônia, que deu a base para o capitalismo dependente que se ergueu nos países latino-americanos.
“Aqueles que ganharam só puderam ganhar porque perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota sempre esteve implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus agentes nativos”, pontua já nas primeiras páginas do livro de 1971.
Por sua contundência, a edição também marcou momentos históricos.
Em 2009, durante a V Cúpula das Américas, o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez entregou um exemplar ao então recém eleito, Barack Obama.
Depois do episódio, o livro voltou a bater um recorde de vendas, embora sua procura seja constante.
O escritor Roberto López Belloso comenta que anualmente a obra sempre está entre os volumes mais roubados das livrarias na Argentina.
“É um livro que por uma razão ou por outra, os leitores sentem a necessidade de se encontrar com ele”, relata.
SOBRE O AUTOR
No caso de Galeano, autor e obra são um só.
O jornalista, que viveu exilado na Argentina e na Espanha durante os anos de ditadura militar no Uruguai (1973 – 1985), nunca deixou de expressar sua convicção de que um mundo mais justo e igualitário era possível.
“Não vale a pena viver para ganhar, vale a pena viver para seguir sua consciência”, disse em uma entrevista em 2011, quando já lutava contra o câncer.
Com o fim do regime militar, de volta a Montevidéu, abriu, junto com Mario Benedetti, a revista Brecha Editorial, para seguir dando voz às causas dos “ninguéns”.
Belloso, que foi chefe de redação da publicação enquanto Galeano ainda era membro do conselho editor, comenta que as únicas vezes em que ele interferiu no conteúdo do veículo foi para sugerir pautas relacionadas a temáticas menos abordadas pela imprensa: a luta dos Povos Saharaui contra as agressões de Marrocos, a demanda de acesso ao mar para a Bolívia ou o caso de Ayotzinapa.
Ganhador de vários prêmios, entre eles Casa das Américas, American Book Award, Stig Dagerman, Alba de Letras, medalha de Ouro do Círculo de Belas Artes de Madri, Galeano também foi o primeiro Cidadão Ilustre dos países do Mercosul.
Embora conte histórias difíceis com uma prosa democrática, de fácil compreensão, todo o reconhecimento internacional foi resultado de um trabalho minucioso, de quem “não escreve por encomenda”, como afirmava o autor em uma entrevista ao canal TeleSUR, em março de 2011.
“Me dá muita felicidade escrever, é uma alegria na vida, mas também me custa muito. Eu escrevo, reescrevo, risco, jogo fora, até encontrar as palavras que realmente merecem existir”, afirmou.
AMIGO E IRMÃO
Nepomuceno que “mais que amigo, foi um irmão” de Galeano, relembra as exigências do mestre nos anos de leitura, café e cigarro compartilhados.
“Cada vez que eu terminava um livro dele, a gente dava um jeito de se encontrar e ficava dias, porque negociava cada palavra. O Eduardo sabia perfeitamente bem o português do Brasil”, conta o escritor brasileiro, que caracteriza Galeano como um homem enérgico, bem humorado e amoroso.
Com “As veias abertas da América Latina” o escritor mostrou que era possível fazer jornalismo e literatura engajados sem cair no estigma do material panfletário.
Com sua linguagem “sentipensante” – aquela que é capaz de pensar sentindo e sentir pensando – Galeano preencheu os vazios históricos com palavras que valiam mais que o silêncio.
“Devemos inventar o futuro, não aceitá-lo. Não temos que nos resignar às fatalidades do destino, porque a história pode nascer de novo a cada dia”, dizia Galeano.
Imagem em destaque: o escritor Eduardo Galeano. Foto de divulgação do Brasil de Fato.
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