Segunda porta-bandeira da Unidos dos Morros reflete, a partir de experiência pessoal da infância e adolescência reavivada agora, como adultificação, etarismo, comparações e estímulo a competições entre mulheres, presentes também no universo do Carnaval, representam armadilha
Por Thaís Helena* | De Santos (SP)
Desde muito nova, carrego a dança e o pavilhão no coração.
Já contei tantas vezes essa história de quando comecei como porta-bandeira aos 5 anos de idade, e sobre a avó que me ensinou esse ofício, que certamente quem acompanha minha carreira e lê os meus artigos já está cansado de saber sobre o meu começo no samba.
Desta vez, caro leitor/leitora, falarei sobre um outro episódio significativo dessa minha trajetória no samba.
Quando eu tinha 10 anos de idade, realizei o sonho de integrar uma escola do grupo especial no Carnaval de Santos. Essa conquista era grandiosa para mim: além de representar uma escola de renome na cidade, eu teria a chance de estar perto de uma das porta-bandeiras que eu mais admirava, uma das melhores porta-bandeiras do Carnaval santista.
Eu estava como porta-bandeira mirim, até que completei 12 anos, e me tornei a segunda porta-bandeira dessa escola. Eu era alta para minha idade, com porte físico que impressionava, e demonstrei, precocemente, talento para ser segunda porta-bandeira. Apesar disso, a minha mente e o meu coração ainda estavam moldados pela inocência de uma criança de doze anos.
Como escrevi, essa primeira porta-bandeira era uma das minhas inspirações: eu observava cada movimento dela, cada giro, cada gesto. Quando eu era mirim, minha admiração por essa porta-bandeira era vista como algo “bonitinho” e “fofo”.
No entanto, ao assumir um papel mais destacado, e consequentemente, mais próximo ao dela, essa mesma admiração foi rapidamente interpretada em acusações de inveja e cópia.
Essas acusações não surgiram do acaso; foi alimentada por comentários externos, que criaram uma atmosfera de rivalidade onde, na verdade, existia apenas um encanto e desejo de uma menina em aprender.
Essa dinâmica, infelizmente, reflete um padrão muito maior que essa minha história pessoal, e afeta muitas mulheres, e foi cientificamente chamado de rivalidade feminina.
No meu caso, ao me compararem com uma mulher adulta, fui submetida a um processo de adultificação.
Adultificação é um termo usado quando características ou comportamentos próprios da infância ou adolescência são ignorados, e a criança ou adolescente é tratada como se fosse mais madura ou responsável do que realmente é.
Ao me compararem com uma mulher adulta, minhas emoções e limitações de uma menina de 12 anos foram desconsideradas. Em vez de me verem como uma criança, entrando na adolescência, que ainda estava aprendendo, vivendo e crescendo, projetaram em mim expectativas e julgamentos que não cabiam à minha idade.
Essa comparação me obrigou a lidar com inseguranças, responsabilidades e cobranças que eram completamente inadequadas para alguém tão jovem, me afastando da naturalidade do processo de amadurecimento e me forçando a ocupar um lugar que ainda não era meu.
Uma menina colocada em um jogo de inseguranças e comparações que não eram apropriadas nem para mulheres maduras, quanto mais para uma criança.
A rivalidade feminina, muitas vezes, não se limita apenas às comparações entre mulheres da mesma faixa etária de idade, mas também cruza as barreiras geracionais, expondo outro problema estrutural: o etarismo.
O etarismo é a discriminação ou preconceito baseado na idade, que pode afetar tanto mulheres jovens quanto mais velhas, dependendo do contexto.
Mulheres mais velhas são frequentemente descartadas ou desvalorizadas em espaços onde o corpo e a beleza de mulheres mais novas são supervalorizadas.
Essa dinâmica perpetua a divisão entre mulheres, pois cria uma falsa hierarquia de valor de beleza baseada na idade.
Jovens são vistas como ameaças ou competidoras pelas mais velhas, enquanto as mais velhas são invisibilizadas e consideradas “superadas” pelas mais jovens. É um ciclo que enfraquece as mulheres como grupo e reforça a narrativa de que só existe espaço para algumas, em vez de todas.
Infelizmente, no meu caso, o preço dessa situação foram as inseguranças, e optei por me afastar do Carnaval por alguns anos. Fui estudar…
Enquanto isso, a porta-bandeira que eu admirava seguiu brilhando, porque sem dúvida ela era – e ainda é – uma artista talentosa, e essa rivalidade forçada que não deveria ter existido, só serviu para paralisar o meu sonho de menina. E me pergunto: quantas outras meninas já desistiram de dançar por comentários maldosos no Carnaval, por posturas equivocadas dos adultos?
Recentemente, um episódio trouxe essa história de volta à tona. Essa mesma porta-bandeira que eu admirava no passado e que me acusaram de copiá-la confeccionou um vestido muito parecido com o meu. E, para minha surpresa, ela afirmou que se inspirou no meu vestido ao criar o dela. A notícia chegou até mim por meio de mensagens e fotos que, mais uma vez, comparavam o incomparável e alimentavam uma suposta rivalidade.
Realmente, uma porta-bandeira, que no passado me acusou de copiar o seu estilo, agora brilha em uma festa com um vestido que, ironicamente, ecoa o meu. A fofoca pode até ser tentadora, mas convido vocês a mergulharem na profundidade dessa discussão.
Essa situação pode ser um convite à reflexão sobre como as mulheres podem se apoiar mutuamente em vez de se verem como rivais.
Lembrei das antigas inseguranças que eu tive lá atrás, mas agora com uma perspectiva diferente: o problema não estava em nós, mas no que nos foi ensinado, numa sociedade que incentiva a competição entre as mulheres.
Quando somos crianças, a admiração e a inspiração são sentimentos genuínos, puros sem intenção de competir. Qual criança que gosta de futebol nunca tentou imitar o Neymar ou a Marta? Qual criança que admira um cantor famoso nunca tentou reproduzir seus passos de dança? Inspirar-se é parte do processo de e aprendizado natural de desenvolvimento de qualquer criança e adolescente.
Portanto, o sentimento que eu tinha em relação à porta-bandeira é puro como uma criança.
Porém, nós mulheres somos ensinadas a competir. Por exemplo, na infância, nós meninas assistimos aos contos de fadas e, na maioria desses contos, sempre são mulheres adultas disputando o amor de um homem ou o vestido mais bonito do baile, reforçando a ideia de que quando crescemos e nos tornamos adultas devemos competir por atenção ou aprovação. E muitas vezes chegamos à fase adulta reproduzindo os padrões de comportamento dos contos de fadas, criando situações de competição e rivalidade sem perceber, sem intenção.
Houve um tempo em que as mulheres eram limitadas às tarefas domésticas e raramente ocupavam posições de poder, e no samba isso se refletia. Por exemplo, mulheres como Dona Ivone Lara precisavam usar nomes masculinos para assinar suas próprias composições.
Hoje, as mulheres conquistaram espaços de destaque na política, na ciência, nas artes e no samba. Elas têm direito ao voto, acesso à educação formal e ao mercado de trabalho, e estão rompendo com estereótipos, ganhando visibilidade como compositoras, carnavalescas e presidentes de escolas de samba. Movimentos como o feminismo possibilitaram a criação de leis que garantem que “o lugar da mulher é onde ela quiser”.
No entanto, ainda enfrentamos desafios. Rivalidades femininas são fomentadas pela falsa ideia de que há lugar para poucas. No samba, as mulheres continuam sendo comparadas umas às outras e enfrentando cobranças excessivas.
Hoje, a menina cresceu, embora eu tenha sido chamada nesta situação de “a menina lá do Morro”…
Como mulher, assistente social, cientista, pesquisadora, acadêmica e escritora, defendo um futuro sem comparações destrutivas e compreendo a importância de construir relações mais solidárias entre mulheres.
No entanto, só consegui alcançar esse nível de maturidade após muito estudo e leitura sobre o feminismo negro. O feminismo negro é um movimento que luta pela igualdade, especialmente entre mulheres negras, contra a discriminação, e defendendo, acima de tudo, o apoio mútuo entre as mulheres.
Por meio de grandes pensadoras como Angela Davis, Audre Lorde, bell hooks, Lélia Gonzalez e Djamila Ribeiro, aprendi que a competição entre mulheres é uma armadilha do sistema que busca dividir nossas forças.
Além dos livros e estudos, também aprendo muito assistindo a programas como o Roda Viva e o Café Filosófico, ambos da TV Cultura, onde já vi diversas intelectuais compartilhando reflexões valiosas sobre o feminismo, a igualdade e o fortalecimento das mulheres na sociedade.
Esses espaços de diálogo têm sido fundamentais para expandir minha compreensão. Hoje, esses programas fazem parte do enredo da minha escola de samba, a Unidos dos Morros, e estão estampados no meu vestido, simbolizando a importância do conhecimento e da cultura na construção de um futuro mais solidário e igualitário para todas as mulheres.
Este vestido, criado com tanto cuidado e talento por Hermann, é um exemplo de dedicação à arte e à cultura. É incrível ver como ele tem se tornado uma inspiração para outras pessoas, e quero parabenizá-lo por seu trabalho impecável. Ele merece, e deve receber, todo o reconhecimento por seus figurinos, que têm encantado e emocionado.
Hermann tem sido uma grande referência de estilista no samba, seu atelier tem sido um lugar onde a criatividade floresce, onde cada detalhe do figurino é pensado com carinho, e onde a colaboração e o respeito são prioridade.
Aproveito este espaço para agradecer à minha atual escola de samba, que, ano após ano, tem se destacado pela sua qualidade, criatividade e inovação. Fico feliz que meu vestido esteja refletindo essa criatividade e inovação da Unidos dos Morros.
É fundamental dizer que ninguém é obrigado a gostar de todas as mulheres. Personalidades divergem, e isso é natural. Porém, devemos reconhecer que a competição gratuita e destrutiva entre mulheres não nos leva a lugar algum.
Como a advogada norte-americana Kimberlé Crenshaw aponta é essencial entender como nossas experiências individuais se conectam a problemas muito maiores como o problema da rivalidade feminina.
Rivalidades femininas não são apenas pessoais, elas fazem parte de uma estrutura que busca enfraquecer nossas possibilidades de transformação coletiva e de um mundo mais justo, onde mulheres possam estar cada vez mais em lugares de destaque.
Ao revisitar minha trajetória, vejo a urgência de criarmos espaços onde mulheres possam brilhar sem medo de serem apagadas.
Não precisamos ser todas amigas, mas é essencial cultivarmos respeito e apoio mútuo, e esse respeito mútuo entre mulheres é o que cientificamente foi chamado de sororidade. Uma palavra que parece com solidariedade, mas se escreve e se pronuncia com o R, pois é uma palavra que vem do latim que significa “irmã”.
Que possamos desconstruir as narrativas de rivalidade feminina e, como nos ensina a filósofa Lélia Gonzalez, construir pontes entre nossas histórias, celebrando nossas diferenças sem que elas se tornem motivo de separação.
A rivalidade feminina, quando transformada em apoio mútuo, ou seja, sororidade, abre portas para um futuro onde mulheres possam crescer e brilhar juntas. Afinal, há espaço suficiente para todas as luzes coexistirem.
Para quem quer saber mais sobre este assunto sugiro as leituras dos livros:
- O Feminismo é para Todo Mundo – bell hooks
- Irmã Outsider – Audre Lorde
- Mulheres, Raça e Classe – Angela Davis
- Por um Feminismo Afro-Latino-Americano – Lélia Gonzalez
- Mapeando as Margens – Kimberlé Crenshaw
- Pensamento Feminista Negro – Patricia Hill Collins
- Quem Tem Medo do Feminismo Negro? – Djamila Ribeiro
- Sejamos Todos Feministas – Chimamanda Ngozi Adichie
*Thaís Helena é assistente social, mestranda em Serviço Social e Políticas Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pós-graduada em Gestão Pública Municipal e segunda porta-bandeira da Unidos dos Morros, escola de samba de Santos.
Imagem em destaque: Thaís Helena, em apresentação na Alvorada do Samba de 2 de dezembro último. Foto: acervo pessoal, feita por Mano Jota
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