Crônica sobre a fome e a vontade de comer; a busca por novos sabores e aromas – nem que venham de um suco de morango com acerola, na falta do macarrão de lamber os beiços.
Cadê os novos temperos?
Por Nicole Zadorestki Caroti | De São Vicente (SP)
Eu estava sentada em um banquinho numa mesa marrom meio moída pelo tempo. Os cantos faltavam pedaços, lascas que aos poucos definham. Algumas partes muito pontudas, se porventura eu ousasse encostar meus dedos bem de leve, com certeza me machucariam. O verniz está descascado e opaco, mal consigo vê-lo. A mesa, apesar dos pesares, continuava ali, com as quatro pernas tombando para um lado, às vezes esquerda… às vezes direita. Variava.
Espero a comida aflita com o estômago questionando minha escolha, principalmente o fato de querer sentar nesta mesa. Com a boca cheia de saliva e desejo, continuo sentada, minhas pernas imóveis.
Ao fundo você chega, senta em um dos banquinhos, mal olha nos meus olhos, joga um prato na mesa.
-Tem isso, se quiser coma, se não, é problema seu!
Surpreendo-me com tua grosseria, eu te esperava aflita com dor no estômago e ainda assim transbordando gentileza. Olho pro prato. Meu Deus. O mais furreca dos pratos que você pode imaginar, todo trincado. Forço minha visão e aproximo meu olhar. Não é possível que esteja vendo certo, não pode ser!! Dentro do pequenino objeto está um montinho de comida podre com moscas. Parece que estragou há muito tempo… e ainda assim tu me serviu isso…?
-Você está falando sério? Só tem isso?? Eu estou com tanta fome e vim de longe.
-Só tem isso, é o que eu tenho pra oferecer. Se não está satisfeita isso não é problema meu.
A ânsia sobe. Meu estômago recusa com os dois bracinhos e grita: NÃO! Ele implora fazendo birra dentro das paredes estomacais. O ácido irritado com a manha começa a subir pela garganta.
-Você me ofereceu uma comida parecida na semana passada. Eu engoli, não neguei. Você disse que ia melhorar o gosto, adicionar uns temperos. Ontem eu juro que vim aqui, sentei na mesma mesa quebrada, esperei o mesmo tempo pelo prato, e surgiu um delicioso macarrão. Saboreie com as duas mãos, deixei a boca toda melada e fui embora de barriga cheia.
-Idaí?
-Hoje vim de novo. Quis provar teu gosto. Ver de perto se colocou novos temperos, da Índia quem sabe…
-É isso que tenho hoje, faz tempo que o prato azedou. Você veio aqui porque quis, têm outros restaurantes pela cidade…e com certeza você já deve dar uma bisbilhotada no aroma…
-É, não nego. Passei em outros lugares. Dei até uma experimentada na sobremesa. O problema é que ainda assim, não desapeguei do macarrão. Eu quero mais. Quero ele de volta.
-O problema é que você espera algo que eu não consigo. Eu não sou das massas. Se o macarrão foi bom, paciência. Hoje este é o prato, coma ou vá para casa com fome.
Olho mais uma vez o prato. Estou faminta.
-Só tem isso?
-Só.
-Só e nada mais?
-Sim.
-Desculpe, mas hoje vou ter que recusar. Estou com fome, cê sabe… Só que este prato não agrada meu paladar. Eu tô com muita fome mesmo, na verdade, nunca senti tanta fome na minha vida… e você sabe, não posso provar só porque espero de volta teu macarrão, e este com certeza não é aquele macarrão. Acho que são as sobras… os sonhos… o que imaginei que fosse…
Levanto do banquinho. Meu estômago agradece e o ácido até desce. Acho que os dois se abraçaram agora e viraram melhores amigos. Vou visitar outros restaurantes, novos pratos.
Tenho certeza que nos botecos alheios há pessoas que assim como eu, não suportam mais os mesmos temperos, e merecem outros, assim como eu.
Olha só que coincidência?! Estou indo, quem sabe a gente se cruza por aí… Quem sabe um dia a gente não se encontra numa feira de escambo… Imagina só, eu tô lá convencendo uma feirante a trocar o tomilho pelo manjericão? Essa é engraçada.
Até lá estarei em um bar diferente. Pra falar a verdade tô ansiosa pelo novo suco de morango com acerola que vi num panfleto pela rua. Olha, quer saber de uma coisa? Vou visitar aquele boteco é agora…
Imagem em destaque: temperos. Por Salvador Scofano/Fiocruz Imagens
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