Em 1989, desfile da Beija-Flor marcou os Carnavais ao denunciar a podridão da desigualdade, que retorna com tudo em 2019.
Por Wagner de Alcântara Aragão (@waasantista) | De Curitiba (PR)
“Ratos e urubus, larguem a minha fantasia”.
Era o título do enredo protesto que a Beija-Flor levou 30 anos atrás para a avenida.
O desfile da escola de Nilópolis, no Carnaval de 1989, entrou para a história. É apontado como uma das maiores apresentações de todos os Carnavais.
Concebido pelo carnavalesco Joãosinho Trinta (1933-2011), e com um samba-enredo contundente, conduzido, como sempre, de forma primorosa por Neguinho da Beija-Flor, a azul e branco nilopolitana pôs o dedo na ferida.
O Brasil que recém saia da ditadura, engatinhava no seu processo de redemocratização, vivia as sequelas dos anos de chumbo.
Desigualdade social extrema, com um povo sacrificado, explorado, de um lado, e uma elite econômica e política, de outro, se aproveitando aos montes dessa situação, e ganhando tudo e mais um pouco.
Lembra muito o Brasil de 2019.
Mas é bom ressalvar: não é que nada mudou nesses 30 anos.
Ao contrário. Experimentávamos um processo de reformas sociais, entre a metade da primeira década dos anos 2000 e até mais ou menos cinco anos atrás.
A desigualdade, ainda que lentamente, diminuía. A miséria, também. A fome, estava erradicada.
Da metade desta década em diante, no entanto, retrocedemos. Voltamos ao Brasil de 1989 que Joãosinho Trinta expôs na Passarela do Samba Darcy Ribeiro.
Por exemplo, o retorno à censura – motivada, na ocasião e não muito diferente de agora, pelo fundamentalismo religioso.
O abre-alas da Beija-Flor, que viria com o Cristo Redentor como mendigo (Joãosinho Trinta levou os excluídos para o desfile), foi proibido de apresentar a escultura, por uma decisão judicial, motivada pela Arquidioces do Rio de Janeiro.
Cristo Redentor desfilou, coberto por plástico e uma faixa de protesto: “mesmo proibido, olhai por nós”.
O Carnaval, hoje, sofre ataques semelhantes, e piores, de segmentos religiosos, sobretudo os neopentecostais.
Em entrevista ao vivo à TV Manchete, segundos antes de entrar na avenida, Joãosinho Trinta declarava:
- “Escola de samba é muito mais que oba-oba de Carnaval. É um grande momento da vida brasileira. É momento de emoção, de beleza, de realização, que deveria ser respeitado por todas as pessoas – igrejas, políticos. Por todo mundo, porque o povo respeita! Proibiram o povo de ver o Cristo mendigo!”
Separamos alguns trechos do enredo. O início do desfile, por exemplo:
- “Um momento de sublimação para o mendigo brasileiro. Este miserável povo de rua será exposto desde o começo do desfile (…) Apesar de não terem razão para tanto, eles serão gentis e comunicativos com todos (…) O carro de abertura vem mostrando o acúmulo desta miséria expresso no lixo físico e humano em torno da enorme e significativa figura de um CRISTO MENDIGO. Isto é a própria imagem do Rio de Janeiro e do Brasil. Uma multidão de pedintes, famintos, pivetes, meretrizes, bêbados, loucos, entidades de rua é representada pelos grupos TÁ NA RUA, RAÍZES DA LIBERDADE, FEITIÇO E MAGIA e SENZALA (…)”.
Essa afirmação arrematadora, e que explica o país de hoje, 30 anos depois:
- “No Brasil, o número de ricaços é muito grande. Muita riqueza foi adquirida com esforço e trabalho honesto. Mas, a maior parte é ilícita, desonesta e até maldita porque está levando este país para o caos.”
O texto do enredo tem muito mais e pode ser conferido na íntegra aqui, na Galeria do Samba.
A Beija-Flor terminou empatada com a Imperatriz Leopoldinense. Nos critérios de desempate, foi superada pela escola de Ramos e ficou com o vice-campeonato.
Tempos destes, o jurado que deu a nota 9 que tirou o título da Beija-Flor declarou arrependimento (ver aqui).
O troféu oficial não veio, mas aclamação do povo está na história.
- LEIA TAMBÉM: Carnaval 2020: é temporada de ensaios
Imagem em destaque: o abre-alas da Beija-Flor proibido, denunciando a censura. Reprodução transmissão TV Manchete.
GOSTOU DO MACUCO?
Ajude a gente a se manter e a continuar produzindo conteúdo útil. Você pode:
-
Ser um assinante colaborador, depositando qualquer quantia, com a frequência que for melhor pra você. Nossa conta: Caixa – Agência 1525 Op. 001 Conta Corrente 000022107 (Wagner de Alcântara Aragão, mantenedor da Rede Macuco; CPF 257.618.408-12)
-
Ser um anunciante, para expor seu produto, ou serviço que você oferece. A gente faz plano adequado à sua condição financeira, baratinho. Entre em contato pelo whatsapp 13-92000-2399
-
Para mais informações sobre qualquer uma das opções, ou se quiser colaborar de outra forma, escreva pra gente: redemacuco@protonmail.com