Fake news, uma das semelhanças entre a pandemia de coronavírus e a de gripe espanhola

Receitas sem nenhuma comprovação científica circulam hoje pela internet. Cem anos atrás, até nos jornais e entre autoridades orientações sem embasamento também eram disseminadas.


Por Cristiane Albuquerque, da Fiocruz | Do Rio de Janeiro (RJ)

Água quente com vinagre, receita de coco e até óleo consagrado.

Esses são alguns ingredientes de receitas que circulam na internet prometendo, sem nenhuma comprovação científica, combater o novo coronavírus (Covid-19).

Se a divulgação das chamadas fake news – ou notícias falsas – tornou-se um fenômeno massivo com as redes sociais e o uso de aplicativos de troca de mensagem pelo celular, em 1918, foram a imprensa carioca e até mesmo as autoridades que contribuíram para disseminar as chamadas “receitas peculiares” que prometiam curar a gripe espanhola.

Essa é uma das constatações do artigo “O Carnaval, a peste e a ‘espanhola’”, do pesquisador Ricardo Augusto dos Santos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

ORIGEM

Acredita-se que a gripe espanhola tenha sido trazida ao território brasileiro por um navio inglês, o Demerara, que passou pelos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro em 1918. Em meados de setembro daquele ano, essas cidades portuárias já estavam infestadas.

Com o avanço da doença, algumas promessas de cura eram noticiadas pela imprensa da época: caldo de galinha, quinino, ovos e limão eram alguns dos produtos considerados milagrosos. “Mesmo sem comprovação do valor terapêutico das substâncias e o desconhecimento do perigo da ingestão sem controle, os jornais divulgavam receitas com a promessa de cura. Verdadeiros ou não, esses boatos eram como se fossem realidade pelo impacto emocional que causavam e eram distribuídos pelo governo”, destaca Ricardo.

O estudo foi publicado na revista “História, Ciências, Saúde – Manguinhos”.

No contexto da atual pandemia do coronavírus, o pesquisador adverte para a necessidade de buscar e somente compartilhar informações de fontes confiáveis e seguras. “As informações incorretas podem contribuir de forma negativa para esse problema de saúde pública. Desta forma, a imprensa deve atuar na desconstrução de narrativas distorcidas sobre a pandemia”, defendeu.

“Uma vez associada a moléstia ao doente, este era isolado. (…) As autoridades públicas restringiram-se a orientar a população a evitar os lugares de aglomerações (…). O medo apossou-se pouco a pouco da população.”

Os trechos destacados podem parecer familiares e similares aos alertas feitos atualmente, mas remetem às recomendações de prevenção da gripe espanhola. No cenário atual, as instruções das autoridades são semelhantes.

De acordo com o historiador, as epidemias são um risco para todos. Mas, no contexto brasileiro, é preciso levar em consideração, também, a questão social no enfrentamento de epidemias.

“As pessoas mais pobres, por exemplo, não possuem moradia e alimentação adequadas, muitos pertencem ao chamado mercado informal. Cumprir as medidas de prevenção pode significar não ter renda. Por isso, muitos continuam trabalhando, correndo riscos. As autoridades devem considerar as características desse grupo social para que ele não tenha sua saúde e economia ainda mais prejudicados”, adverte Ricardo.

OUTRAS SEMELHANÇAS

Outros pontos de convergência entre as epidemias, segundo o pesquisador, são a negação da sua existência ou a avaliação de que os surtos serão pequenos. Explicações que associam as epidemias a castigos divinos contra os pecados dos homens também são muito frequentes. A fuga, a perda dos laços comunitários, a ruptura das normas sociais e o medo são outras manifestações que, apesar das diferenças sociais e históricas, são recorrentes.

“Talvez a maior semelhança entre as epidemias seja a quebra das normas sociais de convivência e sociabilidade. Os processos são rápidos e, de uma hora para outra, a vida é suspensa. Durante a gripe, no Rio, em 1918, as pessoas jogavam nas ruas os cadáveres de parentes próximos para que carroças recolhessem os corpos ou os enterravam nos quintais. A epidemia impossibilitou que esse tipo de ritual funeral fosse executado, por exemplo”, ponta o pesquisador.

De acordo com o estudo, após a epidemia, um fenômeno interessante aconteceu no Rio de Janeiro: o Carnaval de 1919, o primeiro depois da gripe, foi apontado como um dos mais animados da época.

Elementos presentes na epidemia foram alvos de crítcas ou brincadeira. A cidade se divertiu e brincou com um evento que ainda estava causando terríveis reflexos e as revistas ilustradas como O malho e Careta documentaram em dezenas de fotografias a folia que animou o Rio.

“Uma alegria incomum que tomou conta da cidade. Registros mostram a festa popular com bailes, blocos, batalha de confetes e até uma dramatização carnavalesca da situação que os vitimara. Era a festa e o prazer, onde antes havia medo e morte”, compara.


Imagem em destaque: receitas peculiares publicadas em “O Estado de S. Paulo” em 21/10/1918 (imagem: Revista Careta/Acervo Casa de Rui Barbosa)


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