Coração de samambaia. Por Nicole Zadorestki Caroti

Ou “Menina cria planta no peito após ser linchada por explodir prédio”. Conto? Crônica? Notícia? Resenha? Confira.


Coração de samambaia
Por Nicole Zadorestki Caroti | De São Vicente (SP)

Minha pele está se decompondo ainda em vida.

Que maneira mais melancólica de se começar um relato, não é mesmo? Às vezes – ou, na sua totalidade – nem sei como este denso fluxo de sentimentos passa por mim. Acabo sendo, em suma espero, um fio condutor. Uma rede elétrica maltrapilha enfiada em becos ilegais. Sou um cordão remendado. Um gato mal feito. E claro, em ocasiões especiais, toda ligação vai por água abaixo. Afinal, não aguento fortes tempestades. Porém, os médicos estudam meu caso. Isso porque tenho feito fotossíntese. E juro, até agora não sabem como estou viva!

Passo por mudanças frequentes. Uma naja que troca de pele, veemente, em direção ao acaso. Minha casa tem endereço fixo, mas meu rastejar é do mundo. Enfio a minha calda em ruas asfaltadas e lamacentas. Quero estar em todo lugar.

De repente me tornei uma reticência. Os três pontinhos mais agnósticos do planeta. Acredito em algo, sim. Refuto meu coração nos lances de escadas encaracoladas e escuras. Ele bate baixinho com medo do bicho papão. No entanto, a força cardíaca é tão vultosa que, certo dia, explodiu três andares do condomínio vizinho. Um desalmado desastre! Fiz os moradores saírem do prédio. Moribundos e exaustos – de si, de mim.

Com extremo ódio por perderem seus lares, arrancaram-me do quarto, jogaram-me no asfalto e partiram para o linchamento – mais do que público. No meu peito abriram um buraco com machadadas. Falaram que, jamais, esse pobre órgão voltaria a chocalhar. Em hipótese alguma eu os incomodaria novamente com a minha maneira claustrofóbica. Colocaram meu coração em uma sacola plástica e o levaram embora. Pura mercadoria.  Será que essa bomba iria ser útil no tráfico ilegal?

Para meu espanto não morri, nem fiquei infeliz com a barbárie. A partir disso, iniciei um novo hobby: pseudo modelo em wall street. Andei pelas avenidas mostrando a agressão, explicitamente. Quem passava por mim horrorizou-se ao presenciar cruelmente o resultado da carnificina.



Uma jovem caminhando por aí sem o coração. E o mais surpreendente, as pernas continuavam circulando em passos naufragados. Cambaleando nos paralelepípedos, apoiei-me nos postes de iluminação. Vi um cartaz invisível a olho nu. Só o enxergaria quem não compactua com a cardiologia.

Emaranhado demais. Lastimável, sem dúvidas. Não demorou muito para a podridão se instaurar. A pele molenga atraiu novos visitantes: as larvas. Não estando contente com os pequeninos companheiros – que cheiravam mal a beça -, joguei terra e fiz adubo. Plantei sementes de samambaia. E não é que cresceram?

Nem por isso parei com a andança. Continuei a desfilar pelas calçadas da vizinhança. Tenho deixado folhas por onde passo. E isto, é claro, está os incomodando.

Faz seis dias que enviaram um jardineiro à minha casa. Eu olhei profundamente em seus olhos e disse: “Querido, pode podar o quanto quiser, essas raízes são fortes e irão crescer novamente!”

Tenho pensado que, independente do que bate no peito, eu irei incomodá-los. Parece ser da minha natureza. Essa espécie de planta humana é muito teimosa!


Imagem em destaque: samambaia, ao coração. Foto de Nicole Zadorestki Caroti


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